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quinta-feira, março 24, 2005
 
A Cristina já me tinha falado deste texto e, por artes mágicas, apareceu no meu email. Julgo que será o texto que foi lido no Auditório da Torre do Tombo, por ocasião da Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque. Aqui fica com a devida referência ao seu autor:

Anatomia da intoxicação pública em Portugal – o papel da comunicação social no apoio à guerra
Rui Pereira, jornalista

Passados quase dois anos sobre o que se chamou, não por falta de melhor nome, a “Guerra do Iraque”, confirmou-se quase tudo aquilo que antes dos bombardeamentos de 19 de Março de 2003 sobre Bagdad, se sabia já. Percorrendo retrospectivamente o labor do que por conveniência analítica poderíamos chamar o sector português da grande frente mediática internacional em volta do assunto, dispomos de uma série de material que não precisa de ser exaustiva para se tornar eloquente. Ao que habitualmente costuma chamar-se o “corpus de análise”, poderíamos, sem qualquer má vontade ou facciosismo chamar, aqui, “corpo de delito”.
Fornecer-vos-emos aquilo que cremos serem provas irrefutáveis da verdade de uma grande mentira-mundo que o campo mediático português amplificou sem fissuras na cobertura. Na maioria das vezes incompetentemente, sempre arrogantemente. Armado desse infinito despudor que caracteriza o grande desprezo pelos seus destinatários e, também, por si próprio.
Observaremos as regularidades da falsidade, a dimensão da sua propagação, o vozeario da sua reiteração, a complementar confluência entre agentes noticiosos e contrafactores da opinião.
Constataremos a inconsequência das raras inflexões –quando as houve- desde o momento em que a estrepitosa explosão do real na máscara do falso foi acontecendo sem que os sorrisos empalidecessem. Sem que os rostos se tingissem desse rubor culpado que séculos de moral católica nos estampou na pele como sinal indisfarçável de uma culpa que, neste caso, por inteiro, se justificaria que sentissem.
Procederemos à anatomia de um crime continuado -e que continua- do jornalismo contra si próprio. De um crime cuja qualificação agravante consistiu na prodigiosa desqualificação dos seus fautores e executores. Como também na tibieza dos seus cúmplices silenciosos.
Ilustraremos como, procedendo através da importação de um conjunto de conhecidas premissas de propaganda norte-americana, o campo mediático português adoptou sem substancialmente se questionar uma série de preconceitos a partir dos quais implantou à escala doméstica um ambiente intelectual de legitimação daquilo a que dificilmente poderemos chamar outra coisa que não o mais recente grande episódio da cultura imperial que impele desde há mais de 500 anos os poderes do hemisfério norte nas operações de saque contra os povos do “lado de baixo” do planeta.
Examinaremos como esse ambiente intelectual expandiu a deliberada ignorância que produziu e de que foi, simultaneamente, produto.
Evidenciaremos como todas as fontes contrárias ao grande embuste que se perpetrava e cumpria foram escrupulosa e sistematicamente afastadas da possibilidade de se fazerem ouvir. Um procedimento que permitiu contornar o impacto que obrigatoriamente teria tido tomá-las na devida conta Da mesma maneira, acabaram por ver-se subrepresentados e mistificados todos os factos que contrariavam a miserável ficção que pretendia sustentar-se.
Exemplificaremos como o noticiário de saturação e o delito efectivo de uma opinião apresentada como comentário especializado comungaram e deram as mãos para juntar à dolorosa agonia de milhares de iraquianos a dor acrescentada da falsidade que terraplanou milhões de outros seres humanos, enclausurando uns e outros num idêntico e complementar cordão sanitário de morte e mentira.
Inscreveremos demonstrativamente esta operação singular na série política a que pertence, isto é, enquanto um episódio da gigantesca operação de naturalização da mentira como técnica de governação.
Faremos tudo isto a partir da melhor e mais eloquente fonte: o discurso mediático produzido pelos seus próprios actores: a medíocre figura do intelectual mediocrata; os assalariados dos media; os seus tutores. Fá-lo-emos a partir do ruído que produziram como dos silêncios que organizaram.
Enquadraremos esta operação não num marco de conspiração, mas na atmosfera de uma inspiração prepotente que tanto obstrui o acesso à enunciação daqueles que a não adoptam, como pratica a exclusão de quantos, no seu interior, lhe escapam.
Falaremos, pois, de um dispositivo de dominação em que a palavra, o som e a imagem não são mais do que o invólucro imprescindível da bala, da bomba e do lucro.
Descreveremos uma comunidade mediática submissa, submetida e escravizada cuja missão é convencer as outras comunidades escravizadas de que nenhuma delas o é.
Faremos, por fim, tudo isto, sem emitir juízos de valor, mas sim de facto. Sem mover processos de intenção mas sim escalpelizando aquilo que não passa de um sistema de orientação a quem a morte e o sofrimento dos outros tem um sentido sobrevivencial, vital, para os próprios.
Sabemos como a natureza totalitária do discurso predominante, tornado a um só tempo medida moral e problema de ordem pública, provoca, com a sua hegemonia intolerante, que qualquer enunciado que se lhe oponha deve provar circunstanciadamente aquilo que diz. É isso que torna, nos nossos dias, todo o discurso crítico num discurso defensivo.
Temos porém nós, no nosso país, uma longa memória de transformação da defesa em acusação. Os tribunais desse tempo de ditadura confessa e totalitária não eram de opinião como tão amargamente sabem tantos portugueses. Mas nos tribunais deste outro tempo, um tempo de democracia inconfessável, também aquilo que defendemos face àquilo de que temos de defender-nos não nos deixa outra possibilidade senão transformar a sua defesa, na nossa acusação. É isso que faremos com os indícios que em seguida vos deixamos. Não só com os fundamentos da razão, mas também com o fundamento dos factos.
 
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    Al berto, "NEM MAIS - jornal do movimento de jovens apoiantes incondicionais de sampaio", 1995




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