w.w.w@rPaisagens da Destruição v.2004
Em 1989 com a Queda do Muro de Berlim e, alguns anos mais tarde, com o desmembramento da União Soviética, o Mundo entrou numa nova era. Michael Hardt e Toni Negri no seu ensaio “Império – A nova ordem da Globalização” definem-no como a mudança de paradigma que nos levou ao início da Geopolítica pós-moderna1.
No passado, com a chamada “Guerra Fria”, as partes litigantes eram mais definidas e claras. Vivemos quase cinquenta anos num mundo com alguns conflitos regionais localizados (Irão/Iraque ou Paquistão/Índia) e disputas nacionais (Angola, Moçambique, Guatemala ou Argélia), onde os dois blocos se digladiavam de uma forma indirecta, sem estarem oficialmente envolvidos. De tempos a tempos havia alguns momentos de tensão mundial que eram resolvidos através de negociações políticas (Crise dos Mísseis em Cuba).
A Guerra das Estrelas ou a ameaça Nuclear foi sempre uma ameaça latente, mas sempre longínqua. O bipolarismo provocava um equilíbrio negociado que afastava os conflitos mais significativos tanto da Europa como dos Estados Unidos da América.
Entretanto, com o final do mundo bipolar, os anos noventa fizeram-se a partir da ideia que estaríamos a viver num mundo muito mais aproximado. Com o desenvolvimento tecnológico e a proliferação dos meios de informação e transporte podíamos chegar a qualquer lado num curto espaço de tempo. Estas ideias eram reforçadas pelo crescimento da importância da Geopolítica, com o surgimento de novos países, a difusão massiva da Internet e telecomunicações, os movimentos imigratórios entre países vizinhos e a generalização de grandes operações de capitais transnacionais.
As organizações económicas internacionais tais como o FMI, a OMC, o Banco Mundial ou o G7 (agora G8) tornaram-se cada vez mais importantes enquanto agentes do liberalismo económico construindo um sistema de estruturação de valores políticos/económicos e sociais, vigente até aos nossos dias.
Como consequência deste regime de valores, ganha forma uma outra consciência contra-corrente, que se constrói a partir da diversidade de causas e em torno de algumas ideias comuns. O movimento anti-globalização “oficializa-se” a 30 de Novembro de 1998 em Seattle, constitui-se em Porto Alegre e manifesta-se de Génova à Índia, ou da Argentina à Palestina.
Esta é a época da Globalização e da Geopolítica.
Contudo, e ao contrário daquilo que foram as primeiras interpretações após o fim da guerra fria, esta nova era da geopolítica e da globalização não produziu um mundo mais seguro e pacífico.
Por um lado surgiram redes de crime organizado, capazes de actuar de uma forma transnacional, como as máfias russas, as redes ilegais de emigração clandestina ou os emergentes grupos de acção religiosa. Por outro lado e, justificado como resposta a estas redes, os Estados começaram a implementar medidas de segurança jamais vistas que tem tido uma repercussão directa na diminuição das liberdades individuais e colectivas dos cidadãos.
Sobre este assunto é interessante tomar como caso de estudo os EUA.
Ignacio Ramonet no seu artigo intitulado “Vigilância Total”2 publicado no “Le Monde Diplomatique” de Agosto de 2003, descreve três medidas de segurança recentemente implementadas. Imediatamente após o 11 de Setembro, foi criado o “Patriot Act Law” 3 para melhor controlar quem vive dentro do país, numa segunda fase e para controlar quem entra no país foi criado o CAPPS (Computer Assisted Passenger Pre-Screening)4. Por último temos o projecto TIA (Total Information Awareness actualmente renomeado Terrorist Information Awareness); um programa que pretende nos próximos anos, coligir quarenta páginas de informação sobre cada uma das pessoas que vive à face da terra.
A batalha entre as redes de crime organizado (capazes de actuar em qualquer parte do planeta com pouca tecnologia e grandes consequências) com as novas políticas de segurança e os melhores equipados exércitos resulta, mais do que nunca, num sentimento de guerra contínua e global, que se poderá entender como - world wide war.
Não se conseguindo identificar uma data específica ou um momento especial para o início da w.w.war poder-se-á estabelecer uma sucessão de eventos que lhe estão associados; a primeira guerra do Golfo, a intervenção da NATO nos Balcãs, o Estado de terror na Chéchenia, o “11 de Setembro” de Nova Iorque, o “11 de Março” de Madrid, as bombas de Bali ou a situação na Palestina, etc. Contudo parece-nos nesta fase mais significativo para a constituição do retracto das actuais paisagens da destruição estudar o principal conceito apresentado como justificação da situação.
O conceito fundamental é o de Guerra Justa (bellum juste).
Geralmente este conceito é associado aos antigos impérios, sendo que conseguimos encontrar a sua complexa genealogia nas tradicionais interpretações da Bíblia5.
Entretanto este conceito reapareceu no léxico político primeiro com a Guerra do Golfo, depois nos Balcãs, no Afeganistão e actualmente no Iraque. A Guerra Justa é baseada na ideia que quando um Estado é ameaçado por uma agressão que seja passível de ferir a sua integridade ou território, pode utilizar o jus ad bellum, o direito de declarar guerra enquanto resposta a uma agressão. O conceito desvaloriza a noção de guerra, transformando-a numa ferramenta ética para atingir a paz perpétua. Os fins justificam os meios. A necessidade de segurança, legitima todo o investimento que o Estado possa fazer na sua defesa, seja como aparelho de controlo interno ou ataque ao possível inimigo. A chave da prevenção passa a ser “act before it happens”6.
Se qualquer Sistema Judicial pode ser visto como um método como uma estrutura de valores é cristalizado e a Ética como uma parte material do fundamento jurídico, vivemos uma época em que existe uma quase total coincidência entre o elemento jurídico e ético. Expressões como “Guerra Humanitária”, “Danos Colaterais” ou “Guerra contra o Terrorismo” fazem parte da retórica da Guerra Justa, embora existam algumas pérolas discursivas que denotam ideias que estão para além da retórica. George Bush numa das suas primeiras comunicações ao país após a queda das Twin Towers, referiu que a América iria iniciar uma cruzada contra o mal7, ao mesmo tempo que Berlusconi discursava sobre a superioridade da civilização ocidental – duas retóricas muito próximas da Guerra Santa.
Uma das características fundamentais da Guerra Justa é a clareza com que se pretende definir os dois campos opostos, O Bom ou o Mau, o Deus ou o Diabo, o lado da Paz ou o lado do Terrorismo. Estes argumento e artifícios são utilizados por ambas as partes, sendo mais refinados de acordo com o respectivo fundamentalismo religioso.
A Guerra Justa origina a w.w.war.
Conforme vimos a Guerra Justa exige um contexto complexo para que possa ser declarada o esforço ainda terá de ser maior para ser mantida.
Todos os conflitos, crises ou discursos oposicionistas são utilizados para justificar a Guerra Justa. Constrói-se um sistema em que o seu contraditório serve para reforçar a retórica de ofensiva. Ao mesmo tempo a nova ordem resultante, legitimada pela prevenção, defesa e segurança, assiste à escalada dos actos de guerra e conflitos como um processo natural, ao qual é preciso retaliar ainda com maior intensidade.
O sistema surge então como um centro que suporta a globalização e todas as suas redes de produção e de distribuição económica, construindo uma grelha que absorve e ordena todas as relações de poder mais significativas. Os Estados só têm interesse enquanto peças operacionais do sistema, contudo o seu papel é determinante na disposição dos meios de controlo dos “bárbaros”8 que ameaçam a Ordem. Os “bárbaros” podem ser grupos de fundamentalistas islâmicos ou movimentos pacifistas, pois neste contexto ambos servem para justificar medidas de excepção e procedimentos administrativos ou militares.
O invariável alerta vermelho, produz uma sensação global de insegurança e destruição, que pode vir a afectar de uma forma determinante a pratica da arquitectura.
As cidades transformaram-se no palco privilegiado das operações militares e das principais batalhas, perdendo o seu secular sentido de protecção. A cidade contemporânea tende a perder o motivo que levou os primeiros homens a associarem-se em comunidade que seria o da sua própria protecção - esta cidade transformar-se num alvo mais fácil.
Num interessante artigo Swanford Kwinter e Daniela Fabricius, sobre a cidade dos EUA intitulado “American City” 9, é referido que 70% do orçamento anual da cidade de Atlanta (Florida) é gasto em vedações e portões.
Torna-se assim emergente e aceite uma cultura de guerra alicerçada na exacerbação de elementos de defesa. Esta estética é cada vez mais aceite e difusa; do brinquedo metralhadora, ao muro com arame farpado ou ao automóvel particular:
“In the 90’s, the American car industry was marked by a radical transformation: SUV’s began to dominate car sales until they represented over 60% of passenger car industry profits. The modern SUV is hardly more than a ‘repurposed’ World War II infantry and assault vehicle adapted for urban professionals to extend the garrison-style security of their suburban homes to the new concept of a roaming enclave. Urban dwellers now roam in America and Japanese versions of the original British Rover (engine of the British colonial adventure in Africa), like tourists patrolling their own cities made wild and menacing now their own deliberate neglect.
SUV culture expresses at the same time an ambiguous contempt and hostility for metropolitan existence as well as a longing for redemption of the urban soul through equipment…
As an extension of the post-war station wagon – the first car directly marketed for women (now experienced in operating machinery from their role in wartime munitions factories – nearly 60% of SUV’s in the city today are driven by women.”10
Sobre esta nova estética de guerra e segurança, construtora das paisagens de destruição, é interessante analisar ainda o caso do Ground Zero em Nova Iorque. Num artigo da Times Online publicado dois anos após o 11 de Setembro no seu caderno “Travel” (06-09-2003), James Bone explica como espaços de tragédia se transformam em lugares de peregrinação, referindo por exemplo ao facto que o Ground Zero ser actualmente mais visitado do que eram as Twin Towers.
Arquitectos e urbanistas estão naturalmente preocupados com a construção, embora na situação actual a construção seja apenas uma parte do problema.
É cada vez mais ponto assente que tudo aquilo que se constrói poderá vir a ser destruído11. A destruição no quadro da w.w.war, passou a ser um elemento determinante da actividade do arquitecto ou urbanista, seja pela tentativa de prolongar o tempo de vida do que se constrói seja pela participação na destruição do construído.
Neste segundo aspecto o caso de Detroit é paradigmático.
O centro de Detroit foi quase integralmente abandonado. Hoje o antigo centro comercial é considerado uma estrutura demasiado perigosa para se poder entrar, pelo risco de derrocada, ao passo que noutros edifícios crescem árvores de porte. Segundo Kwinter e Fabricius12 desde 1979 foram concedidos 9 000 licenciamentos de construção e 108 000 autorizações de demolição. Acompanhando a necessidade, foi culturalmente instituído em Detroit o Devil’s Night, uma noite antes do Halloween em que grupos de pessoas lançam fogo a edifícios devolutos. Em 1983 foram incendiados 800 edifícios.
Contudo a destruição do construído não tem só o carácter alegórico do exemplo anterior. Conforme já foi referido as cidades transformaram-se nos principais palcos do clima de guerra permanente. Sendo assim, a arquitectura e o urbanismo, desempenham um papel fundamental no desenho das tácticas de guerra, tanto pela forma como se construiu como na forma da sua destruição.
Na Bósnia, a destruição dos edifícios de uso público (mesquitas, cemitérios e praças) seguia um antigo preceito de planeamento; a ordem social não se manterá apartir do momento em que sejam destruídos os locais de uso colectivo. Em Bagdade a lógica partiu da anulação de todas as redes infra-estruturais que a abasteciam - estradas, redes eléctricas e sistemas de abastecimento de água. Em Belgrado procurava-se a vitória psicológica, os principais alvos eram os monumentos e os edifícios de maior identidade cultural. A substituição, de uma anterior infra-estrutura, utilizando-a para os mesmos fins, foi a estratégia assumida em Jenin, quando os bulldozers irromperam nos campos de refugiados tomando as estradas e “limpando” tudo o que as circundava, aumentando a escala dos vazios para melhor controlar a zona. Aliás é paradigmático constatar os inúmeros arquitectos e engenheiros civis que desempenham postos de comando avançado no exército israelita.
Conforme se pretende arguir, na arquitectura e no urbanismo, a geopolítica pós-moderna está também a produzir uma alteração fundamental das respectivas ciências. Seja pelo mundo das cidades inseguras, seja pela estética da destruição, seja pelos muros que reforçam e determinam diferenças, seja pelo devastar de malhas consolidadas.
A prática destas profissões irá, com certeza, sofrer alterações drásticas nos próximos anos e poderá estar dentro destas duas ciências a possibilidade de construção de novos caminhos e soluções ou a conivência para as mais violentas batalhas.
Tiago Mota Saraiva, Dez. 04